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sábado, 17 de agosto de 2019

PAISAGEM CONCEITUAL: CONSTRUÇÃO TEÓRICA E SUA UTILIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

São inúmeras as teorias formuladas por diferentes escolas filosóficas, desde a antiguidade, com vistas a explicar a gênese, a produção, o significado e a utilização dos conceitos na linguagem cotidiana e de seu uso mais particular na filosofia, na arte, na ciência e na educação (ABBAGNAMO, 2007). No entanto, nenhuma teoria foi capaz de dar conta das formas tão diversas conforme os conceitos são utilizados nos diferentes sistemas de conhecimento (VUILLEMIN, 1997).
Ainda que não tenhamos a pretensão de construir e propor uma teoria sobre conceito, decidimos aprofundar nossa compreensão sobre o significado e uso deste termo por considerá-lo, de um lado, abstrato, polissêmico e de difícil entendimento mas, por outro, de fundamental importância para a construção e a socialização do conhecimento em todas as áreas do saber humano, ressaltando, assim, o seu uso indispensável na educação.
O conceito, enquanto termo linguístico, está logicamente vinculado à linguagem pelo simples fato de que toda distinção e nomeação são feitas por um ou mais observadores – na linguagem. Logo, quando distinguimos os sentidos do termo “conceito” vis-à-vis de outros termos com significados parecidos – noção, ideia, definição – mas distintos, o fazemos na condição de observadores, ou seja, na linguagem. Retorna-se à linguagem quando constatamos, através de nossas distinções, que os conceitos são objetos mentais e produtos do discurso, portanto, se encontram inseridos no domínio da linguagem (EICHEVERRIA, 1994).

domingo, 9 de maio de 2010

Dialética, Diálogo e Conversa - Parte IV

Parte I - Parte II - Parte III

6 - A Conversa

Iniciaremos esse tópico com as questões anteriormente formuladas, quais sejam: o que é cognição? O que é linguagem? O que é ética?

Quando nos encontramos com a pergunta sobre a cognição, na vida cotidiana, geralmente fazemos referência à conduta adequada de um organismo em face de um contexto, especificado por uma pergunta e validado por um observador ou por uma comunidade de observadores (Maturana, 2001). Nesta perspectiva, a questão sobre o conhecer pode ser desviada do epicentro das racionalizações sofisticadas para inseri-la nas experiências da vida cotidiana. Assim, o que temos que explicar é a experiência - o experienciar – e é prontamente isto que vincula a questão do conhecer à biologia. Embora essa vinculação tenha sido enfatizada por muitos autores, especialmente Piaget (1970, 2000), Maturana formula e responde uma pergunta cognitiva fundamental: como o vivo se mantém vivo? Como pode ser facilmente deduzido, a resposta para esta pergunta estará sempre vinculada à biologia porque qualquer que seja o domínio especificado pelo observador, ele estará sempre fazendo uma referência ao viver ou ao seguir vivendo de um ou outro organismo. Morre-se quando se deixa de saber viver. Se aceitarmos o que foi dito, a definição do conhecer pode ser ampliada para fora do âmbito humano e, assim, o leitor é convidado a aceitar também que todos os organismos vivos atuais possuem uma conduta adequada aos nichos ou contextos em que vivem e, portanto, estão em ato contínuo de conhecer o mundo, justificando-se assim o aforismo “viver é conhecer”, anunciado por Maturana e Varela (1995).

Segundo Maturana, todo sistema vivo possui um domínio de interações moleculares recorrentes, auto-referente, que se fecha às interações instrutivas do meio. Somente as interações especificadas pela organização autopoiética do vivo podem ser realizadas e é precisamente nisto que consiste sua capacidade cognitiva em relação ao mundo. Verifica-se que a noção de cognição, como relação interativa, ganha um sentido singular no pensamento de Maturana. É preciso esvaziar o sentido tradicional que a noção interativa traz para que se possa apreender a novidade deste cognitivismo. Habitualmente pensamos em interação como a relação entre dois domínios formais independentes e que preexistem à sua relação. Daí a cognição ser definida, classicamente, como a relação entre o organismo e o meio, em uma interação representacionista.

A teoria da autopoiesis se apresenta como uma "Biologia do conhecer" que rompe com o sentido habitual da noção de interação representativa, fazendo da cognição a atividade de engendramento de si e do mundo, em um mesmo ato de criação. É esta ação por excelência do vivo que revela o caráter indissociável entre viver, fazer e conhecer. Pois, sendo uma organização circular fechada - "clausura operacional" - as modificações estruturais que se estabelecem devem ser entendidas como novas interações que se tornam possíveis. Isto é, as modificações internas inerentes à estrutura de qualquer sistema vivo possibilitam as formas de interação do organismo com o seu meio, mas de tal maneira que o meio com que interage não preexiste ao organismo que o conhece. O ato de conhecer é o resultado de uma modificação da estrutura do sistema que produz, em um duplo efeito, tanto o estado global em que se encontra o sistema cognitivo quanto o mundo correlacionado a este. A cognição é definida como função de interação e o vivo como domínio das interações possíveis. É por isso que o fenômeno cognitivo, em sua totalidade, não se reduz ao sistema nervoso ou aos organismos que possuem um sistema nervoso. Há uma dimensão cognitiva da célula, de qualquer que seja o organismo vivo, na medida em que o vivo está organizado como uma unidade autopoiética acoplada estruturalmente ao mundo (Maturana & Varela, 1995). É precisamente este “se manter vivo”, em acoplamento estrutural com o meio, que Maturana denomina de conhecer biológico. Ou seja, todo organismo vivo está, momento a momento, em ato contínuo de conhecer. Foi com este entendimento que afirmamos, no final da Dialética, que a cognição é a síntese da superação da tensão entre o fluxo do viver individual - qualquer que seja ele - e o mundo.

Embora possamos afirmar que todos os organismos vivos são sistemas cognitivos e que, portanto, são capazes de conhecerem o mundo no qual estão vivendo, não podemos afirmar, no entanto, que todos os organismos vivos produzem conhecimento, ou seja, são capazes de fazer uma referência à história utilizando as recursões da linguagem, como estamos fazendo agora ao elaborar este texto. Dito isto, estamos afirmando a importância da linguagem para distinguir o conhecer do conhecimento - produção de enredos explicativos, restrito ao mundo humano (vide Andrade & Silva, 2005, para esta distinção).

Assim, denominamos conhecimento ao produto advindo do processo sistemático do conhecer e que inclui, além do produto advindo do processo, a capacidade do organismo de observar e de fazer referência, de forma recursiva e recorrente, à própria história do processo. Essa capacidade de fazer referência à história e produzir enredos explicativos para enredos fenomênicos utilizando as recursões da linguagem é particular e constitutiva do mundo humano. Tendo definido que o conhecimento é, essencialmente, a produção de enredos explicativos para os enredos fenomênicos, segue-se que a linguagem é uma condição necessária para qualquer que seja o sistema de conhecimento - mito, religião, filosofia, ciência, psicanálise, arte, etc (Andrade & Silva, 2005).

Chegamos assim a nossa segunda questão: o que é linguagem? Segundo Maturana, a linguagem é uma série histórica de condutas. Ou seja, o que o observador vê quando duas ou mais pessoas conversam é a seqüência e/ou a rede histórica de coordenações de coordenações de ações consensuais e recursivas que constitui a rede lingüística ou, simplificadamente, a linguagem (Maturana, 1989, 1997a). A realização desta rede, no tempo, fez e faz emergir outros fenômenos e/ou regularidades que, dependendo do recorte teórico realizado pelo observador, são denominados de gramática, símbolos, significados, significantes, distinções, raciocínio, reflexão, mente, pensamento, consciência, etc.

A rigor, todas as fenomenologias apontadas acima, expressas como comentários de um ou mais observadores, decorrem do mesmo mecanismo gerativo, qual seja, o girar da linguagem sobre si mesma. Além deste mecanismo gerativo com o qual é possível explicar vários fenômenos lingüísticos no âmbito humano, a linguagem é ação e, também, geradora de ações. Ou seja, com a linguagem podemos deduzir e explicar as coisas do mundo, mas, também, fazer com que elas aconteçam, intervindo no curso dos acontecimentos (Eicheverria, 1994). É com base nisto que Maturana afirma que o mundo é configurado na linguagem e, portanto, não está predeterminado.
Embora a complexidade dos fenômenos humanos não se restrinja à linguagem, não há nenhum lugar fora da linguagem desde o qual podemos observar nossa existência. É precisamente através do mecanismo de reconstrução lingüística que podemos ter acesso aos fenômenos não-linguísticos de nossa existência (Eicheverria, 1994). Assim, por exemplo, se apontarmos, através de nossas reflexões e distinções, os diferentes agrupamentos humanos e as respectivas redes de conversações nas quais eles se inserem no fluxo do viver, surgem o que nós conotamos como culturas humanas. Da mesma forma, se incluirmos em nossas reflexões as preocupações sobre as conseqüências de nossas ações e pensamentos sobre outros seres humanos, surge o que nós conotamos como ética.

Assim, a ética ou as preocupações éticas surgem ao assumirmos a responsabilidade das conseqüências de nossos atos e pensamentos sobre outros seres humanos. Tendo em vista que nossos atos e pensamentos se configuram no entrelaçamento de nosso emocionar e do nosso linguajar com o outro, “todo ato humano tem lugar na linguagem e todo ato na linguagem trás à baila um mundo que se cria com os outros no ato de convivência que dá origem ao humano. Por isto, todo ato humano tem um sentido ético, porque é um ato de constituição do mundo humano” (Maturana, 1997a). Se aceitarmos que o fundamento ético é mais emocional do que racional, isso implica que a ética deve ser cultivada e vivenciada em todos os espaços educativos, mais com os exemplos do que com os discursos.

Estamos chegando ao final, mesmo que provisório, deste nosso cum versare. Gostaríamos de propor um desfecho que pudesse alinhavar as três categorias anteriormente discutidas – dialética, diálogo e conversa - e que fosse, ao mesmo tempo, um eixo unificador das obras de Freire e Maturana. Propomos que este ponto de costura seja uma emoção a qual, pela sua importância para a conclusão deste texto, deverá ser um pouco trabalhada antes de ser formalmente nomeada.

Primeiramente, o que é uma emoção? As emoções, diferentemente do que a nossa tradição cultural costuma confundir com sentimentos, são estados do corpo ou disposições corporais que nos abrem ou nos fecham à possibilidade de realizar certas condutas (Maturana & Nisis, 1999; Bloch, 2002; Maturana & Bloch, 2003). Assim, por exemplo, não se espera uma conduta gentil no âmbito emocional do ódio.

A pergunta que se coloca então é a seguinte: que emoção é essa que fundamenta o diálogo e a conversa e, ao mesmo tempo, serve como eixo unificador da vida e obra de Freire e Maturana? A resposta é simples e direta: o amor. Não o amor como sentimento, mas o amor como emoção primordial que permite a aceitação do outro, enquanto legítimo outro, na convivência. E porque o amor seria assim tão importante para o diálogo e para a conversa? Primeiramente, porque a linguagem é filha da aceitação e não da negação sistemática do outro. Ou seja, a linguagem só pôde ter surgido entre nossos antepassados porque o amor, enquanto emoção primordial, permitiu o prazer na espontaneidade dos encontros e dos reencontros e, portanto, a possibilidade de uma convivência, ininterrupta, entre humanos (Maturana, 1989; 1997a, 2002).

Assim, ao comentarmos sobre estas duas formas de conduta do linguajar - diálogo e conversa - ou, se o leitor preferir, sobre essas duas diferentes formas de comentar a linguagem - como uma mesma e única conduta, gostaríamos de reiterar a importância do amor. Como Maturana insiste, a linguagem não se reduz a um puro linguajar, pois a ela subjaz o emocionar. O fluir desse entrelaçamento entre o linguajar e o emocionar está apontado na etimologia da palavra conversar - cum, que quer dizer com, e versare, que quer dizer dar voltas com o outro – como se a própria palavra nos quisesse chamar atenção para o que fazemos no cotidiano: damos voltas uns com os outros, o tempo todo, nos tocando com as palavras, criando redes lingüísticas.
Se o amor é fundamental à conversa e ao diálogo, seria ele também importante à radicalização do compromisso social, explícito na dialética? Acreditamos que a discussão epistemológica manifesta neste cum versare nos aponta uma resposta possível à questão acima formulada, qual seja, as contradições sociais não são independentes do viver. Isto implica que, do ponto de vista social, realidades como a miséria não podem ser encaradas como acidentes históricos. A rigor, o que denominamos realidade social é tanto produto quanto processo das condições históricas nas quais e com as quais configuramos o nosso cotidiano. Acrescente-se a isso a responsabilidade da ação de comprometimento ou não comprometimento com que nos posicionamos frente ao mundo que configuramos no fluxo do viver. Se aceitarmos que toda transformação social ensejada na prática da liberdade tem que ocorrer com o outro e não para o outro, devemos aceitar também que toda postura libertadora deve ser racional e emocionalmente crítica e emocional e racionalmente ética. Nesta perspectiva, devemos avançar para além da simples interpretação racional dos filósofos e para além da simples ação emocional dos rebeldes. Acreditamos que este convite está posto como práxis que ecoa a síntese razão/emoção enunciada pelo revolucionário: “Hay que endurecer-se, pero sin perder la ternura jamás”.


Dialética, Diálogo e Conversa - parte III

Parte I - Parte II - Parte IV

5 - O Diálogo

O diálogo, segundo Paulo Freire, é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o pronunciam e o transformam e, assim fazendo, humanizam o mundo para a humanização de todos (Freire, 2002b, p.43). Segundo esta concepção, o diálogo inclui, além da dimensão ética do encontro amoroso dos homens, o objeto do conhecimento - o mundo - que desafia e mediatiza a relação interpessoal e comunicativa.

Partindo dessa concepção freireana sobre o diálogo, procuraremos abordar a questão da ética, da linguagem e do conhecimento. Tendo em vista que no próximo tópico estaremos abordando “a Conversa”, uma categoria da epistemologia de Maturana, utilizaremos essas mesmas questões (ética, linguagem e conhecimento) para, com elas, apontar as consonâncias e as dissonâncias epistemológicas entre Paulo Freire e Humberto Maturana.

É importante ressaltar, como ponto de partida, que a ética tem um lugar muito especial no discurso e na práxis de Freire e de Maturana. Isto pode ser constatado pela conduta de ambos, tanto no que concerne à coerência entre o dizer e o fazer quanto ao respeito incondicional para com o outro, no que este termo tem de mais genérico e universal. Quando afirmamos as consonâncias de Freire e Maturana com relação à ética, não estamos tomando a ética como discurso filosófico e sim como conduta pautada por preocupações éticas. Essa conduta ética é tão impecável em Freire e Maturana que tanto a obra quanto a história de vida destes autores são comparadas a duas versões de um mesmo hino de exaltação ao ser humano.

As questões da linguagem e do conhecimento serão tratadas no bojo da discussão mais ampla sobre educação. Nesta perspectiva, Paulo freire mostrou que a educação deve promover a ampliação da visão de mundo e que isso só acontece através da relação dialógica. Não no monólogo daquele que, achando-se saber mais, transfere conhecimento para aquele que pensa saber menos ou nada saber. Assim, ser dialógico é vivenciar a educação como prática da liberdade. Educar, como diz Freire, em sua oralidade dialética, “é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais” (Freire, 2002b, p. 25).

A linguagem e a comunicação, assim como elas foram concebidas por Freire, implicam na compreensão do conteúdo sobre o qual os interlocutores estabelecem o diálogo. A comunicação eficiente exige que os sujeitos inter-comunicantes sejam capazes de manipular signos lingüísticos comuns ao universo de ambos. Não há, para Paulo Freire, relação comunicativa se os interlocutores não estabelecem entre si uma compreensão em torno da significação do signo ou dos signos (Freire, 2002b). É importante notar que a linguagem, nessa concepção, é apresentada como uma característica intrínseca do humano capaz de mediar, simbolicamente, as relações do homem com o mundo.
Há de se fazer aqui um contraponto entre Freire e Maturana com relação à linguagem, qual seja: enquanto Freire ainda assume o caráter mediador e simbólico desse fenômeno (Freire, 2002b), Maturana rompe com esse caráter e propõe um novo caminho explicativo para a linguagem, qual seja: uma coordenação de coordenação condutual consensual (Maturana 1989, 1997a). Aprofundaremos essa distinção para demarcarmos algumas fronteiras entre o pensamento de Freire e Maturana (embora essa distinção vá ter início neste tópico, o seu aprofundamento ocorrerá no tópico seguinte, com “A Conversa”).

Segundo Maturana, a linguagem é uma maneira dos indivíduos fluírem em interações recorrentes através das coordenações de coordenações condutuais consensuais (Maturana, 1989; 1997a). Partindo deste caminho explicativo, o autor nos faz três alertas com relação à linguagem: o primeiro é que a linguagem não tem lugar no corpo dos participantes, mas sim no espaço de coordenações recorrentes e consensuais de conduta. O segundo é que nenhuma conduta em particular constitui, por si só, um elemento da linguagem, mas é parte dela somente na medida em que pertencer a um fluir recursivo de coordenações consensuais de conduta. Por conseguinte, são palavras somente àqueles gestos, sons e posturas corporais que participam como elementos consensuais do fluir recursivo das coordenações consensuais de conduta que constituem a linguagem. O terceiro ressalta a capacidade do ser humano em fazer referência à história através das distinções e das recursões da linguagem com as quais e pelas quais surgem tanto o observar quanto o observador. Como diz Maturana "tudo que é dito é dito por um observador a outro observador, que pode ser ele mesmo. Um observador é um ser humano que pode fazer distinções e especificar o que ele distingue como uma unidade, como uma entidade diferente dele mesmo. Um observador pode fazer distinções em atos e pensamentos, recursivamente, e é capaz de operar como se fosse externo (distinto) à circunstância na qual ele se encontra” (Maturana, 1997).

Como pode ser constatado pelo leitor, tanto os símbolos quanto as representações saem de cena ao se aceitar o caminho explicativo proposto por Maturana. Saem os símbolos, porque os mesmos são construtos que surgem na relação com o outro e, portanto, não existem a priori. Sai a representação porque não precisamos lançar mão dela, nem no seu sentido semântico, nem no seu sentido epistemológico, para compreender a relação entre sujeitos falantes. Assim, por exemplo, ainda que possamos usar e aceitar, corriqueiramente, enunciados como se eles “representassem” um conjunto de condições ou de fatos, não precisamos aceitar que a linguagem funcione por meio de representação ou que existam fatos no mundo que sejam, per si, independentes da linguagem. Esse sentido semântico é pragmático e nós o usamos o tempo todo, despreocupadamente, sem nenhum compromisso epistemológico. O sentido epistemológico aparece, no entanto, quando generalizamos a noção semântica com vistas a construir uma teoria sobre como a linguagem funciona (Varela et al. 2003). Se isso ocorre, há de se assumir os compromissos epistemológicos inerentes a essa posição, quais sejam: o mundo é pré-determinado e suas características independem da biologia do sujeito que o pronuncia. Disso decorre que, dentro do paradigma hegemônico, não há outra maneira de explicar a relação entre a atividade cognitiva do sujeito que pronuncia o mundo predeterminado e a ele independente sem lançar mão da existência de representações mentais - imagens, símbolos ou padrões subsimbólicos de atividades sistemicamente distribuídas – pois são precisamente essas representações que possibilitam a mediação simbólica entre o sujeito e o mundo (Varela et al., 2003).

Uma outra noção que surge como uma conseqüência lógica da concepção representacionista da linguagem é a “correspondência”. É ela que garante o estatuto de verdade aos enunciados ao vincular os objetos do mundo - causas - às imagens mentais produzidas no sujeito – conseqüências. Como nos alerta Varela e colaboradores (2003), o problema não está em aceitar ou não o sentido epistemológico da representação, pois isso depende de nossas reflexões, conhecimento e convicções. O que não se deve fazer é passar da obviedade do sentido semântico da representação para o sentido “forte”, epistemológico, sem que se saiba que, com isso, está se aceitando também o compromisso epistemológico.

Tendo feito essa rápida abordagem sobre as concepções de Freire e Maturana com relação à linguagem, faremos agora alguns comentários sobre o fenômeno da cognição e do ato cognoscente, segundo a concepção freireana.

Para Paulo Freire, o verdadeiro ato cognoscente põe o sujeito numa posição perceptiva capaz de transformar o objeto do conhecimento de “ad-mirável” em “ad-mirado”. A mudança fundamental reside em que, no primeiro caso, o objeto permanece ao nível do “ad-mirável” frente à percepção do sujeito, como algo que ele se dá conta. A transformação - ou o conhecimento - se dá quando, delimitando o objeto como ad-mirável, o sujeito cognoscente penetra ou se adentra cada vez mais no ontos do objeto, transformando-o em “ad-mirado”. Na primeira hipótese, o sujeito terá do “ad-mirável” uma pura opinião – doxa - na segunda, um conhecimento – logos (Freire, 2002b).

Uma outra mudança qualitativa na passagem do “ad-mirável” ao “ad-mirado” é o estabelecimento da comunicabilidade entre sujeitos. Ou seja, o objeto “ad-mirado”, ou em processo de “ad-miração”, ao mediatizar a “ad-miração” dos sujeitos que sobre ele incidem uma reflexão, possibilita tanto a inteligibilidade (do objeto) quanto à comunicabilidade (entre os sujeitos). Dito de outra forma, sem realidade cognoscível – “ad-mirada” ou em processo de “ad-miração” – mediatizadora de sujeitos cognoscentes em torno do qual o conhecimento é dialogicamente produzido e compartilhado, não haveria inteligibilidade nem comunicabilidade. É por isso que a relação gnosiológica não encontra seu término no objeto conhecido, pois que, sem a relação comunicativa entre sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível, não haveria ato cognoscitivo. Ou seja, o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. É por isso que não é possível compreender o pensamento fora de sua dupla função: cognoscitiva e comunicativa (Freire, 2002b).

Depreende-se desta dupla função que nenhum dos sujeitos da relação dialógica pode ser coisificado ou transformado num mero depositário do conteúdo do objeto sobre o qual se pensa. Se assim fosse – e quando assim é – não haveria a comunicação nem tampouco a inteligibilidade. Destarte, os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam e este comunicar, comunicando-se, é diálogo (Freire, 2002b).

Nesta perspectiva, a inteligibilidade e a comunicação se dão simultaneamente e, portanto, a produção do conhecimento não se reduz à pura relação sujeito cognoscente/objeto cognoscível, pois, se assim o fosse, romperia a estrutura dialógica em que a presença do outro se faz ontologicamente necessária. Partindo desse entendimento, Paulo Freire reiterou inúmeras vezes ao longo de sua obra o equívoco em conceber a educação como um mero ato de transmissão de informações e/ou de conhecimentos de quem sabe para quem, silenciado na ação educativa, é impedido de ser mais (Freire, 1969a, 1970, 1992, 1998, 2002b).

Ainda que Paulo Freire possa ter intuído os dois sentidos da representação, semântico e epistemológico, e demonstrado a importância do outro, fundado na relação comunicativa, ele não elaborou uma distinção que lhe permitisse explicar, seja no âmbito de sua concepção da linguagem, seja no âmbito de sua teoria do conhecimento, o que ele certamente intuiu e vivenciou: a impossibilidade de transferir conhecimentos no âmbito humano – o que ele denominou com a expressão “educação bancária” (Freire, 1969a, 1970, 1998).

Partiremos desse ponto para propor na “Conversa” os fundamentos biológicos que impossibilitam qualquer ser vivo, incluindo o Homo sapiens sapiens, de ser instruído, especificado ou determinado de fora, heteronomicamente.

Dialética, Diálogo e Conversa - Parte II

Parte I - Parte III - Parte IV

4- Paulo Freire e Humberto Maturana: consonâncias e dissonâncias

Embora Paulo Freire e Humberto Maturana tenham dialogado com uma lista enorme de autores ao longo de suas vidas, o nome de cada um deles não consta das suas respectivas listas. Isto pode ser explicado pelas diferentes áreas do conhecimento nas quais eles se dedicaram - educação e biologia, respectivamente. À parte isto, identificamos uma forte confluência, de natureza epistemológica, nos resultados que ambos chegaram e é precisamente essa confluência, mais do que os contrastes, que gostaríamos de ressaltar neste ensaio.

Imbuídos em promover um cum versare com Freire e Maturana, optamos por agrupar as consonâncias e as dissonâncias entre esses autores em três grandes categorias: a dialética, o diálogo e a conversa. A partir dessas categorias, abordaremos a questão do conhecimento, a autonomia do sujeito, a relação com o outro e o compromisso social. Embora estas questões estejam imbricadas entre si, faremos algumas distinções entre elas para nos tornarmos didáticos em nossa análise.

4.1 - A dialética

A palavra dialética pode assumir três sentidos principais, a saber: (a) arte do diálogo para atingir a verdade; (b) a concepção de que o mundo está em contínuo movimento por um processo que envolve a contradição e a luta de contrários (tese, antítese e síntese) (c) método de análise que procura evidenciar as contradições da realidade social e resolvê-las no curso do desenvolvimento histórico (Chauí, 2003).

Tendo em vista que o diálogo será tratado no próximo tópico, como uma importante categoria da epistemologia freireana, privilegiaremos nesse momento somente os sentidos advindos das doutrinas filosóficas de Hegel (sentido b) e de Marx (sentido c), nomes que tiveram grande influência sobre o pensamento de Freire.

Para Hegel, o processo racional é um processo dialético no qual a contradição não é considerada como um paradoxo lógico, mas como o verdadeiro motor do pensamento. Esse último é dinâmico porque procede através da superação das contradições, ou seja: partindo de uma tese (afirmação) e de sua antítese (negação), chega-se a uma síntese (a superação da contradição). Contudo, a superação alcançada na síntese é provisória na medida em que, ela própria, se transforma numa nova tese que já traz em si uma antítese, ou seja, uma contradição – motor do movimento dialético: a luta de contrários (Cury, 1989; Chauí, 2003).

Hegel utiliza então a dialética para reconciliação do homem com o mundo e para explicar o aparecimento do Estado. Assim, no primeiro caso, o homem (Espírito) nega-se como mundo, através da consciência, para afirmar-se como cultura. Ou seja, o Homem é mundo (tese) e o Homem é não-mundo (antítese), porque é Cultura (síntese). A reconciliação ocorre quando o Espírito reconhece-se como sujeito da produção de si mesmo: o Homem é mundo e cultura, porque é Espírito (Chauí, 2003).

Para Hegel, apoiado em sua filosofia do direito, o Estado surge como o grande conciliador. Ou seja, somente o Estado é capaz de exprimir a vontade geral expressa a partir dos particularismos e das singularidades das instituições da sociedade civil. O Estado pode garantir a ordem, a paz, a liberdade e a perfeição do Espírito humano porque ele pode, através do direito, conciliar os conflitos advindos dos particularismos (Chauí, 2003).

Para Marx, Hegel trata a dialética idealmente, no plano do Espírito, enquanto o mundo dos homens exige sua materialização. A dialética marxista considera a matéria como sendo a única realidade, negando qualquer forma de transcendência - espírito, alma, deus, etc. Maior do que qualquer essência é a existência, ou seja, a construção da história. O Homem constrói a história e é produto desta mesma construção. A base econômica (infra-estrutura econômica) determina, em última instância, a superestrutura jurídica, política e ideológica e, portanto, o próprio homem. Esse homem, determinado a partir das relações sociais em que se encontra, produz o seu próprio ambiente. No entanto, esta produção da existência não é de livre escolha, mas historicamente determinada pelas condições sócio-econômicas. O modo de produção constitui a base do regime social e determina o seu caráter, a forma de organização da sociedade e a própria consciência humana. Na busca de um caminho epistemológico que pudesse interpretar a realidade social e até mesmo transformá-la, Marx conferiu à dialética um caráter materialista e histórico. Se o mundo é dialético - se movimenta e é contraditório - é preciso um Método que possa interpretá-lo, que consiga servir de instrumento para a sua compreensão. Este instrumento lógico é o Método dialético, afirmou Marx. Haveria, segundo a concepção marxista, uma permanente dialética das forças entre opressores e oprimidos e esta dialética, materializada na permanente luta de classes, é o motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético (Marx, 1844; Cury, 1989; Chauí, 2003).

4.1.1 - Paulo Freire frente à dialética

As dialéticas de Hegel e de Marx influenciaram muito o pensamento de Paulo Freire, especialmente em sua práxis educativa. Assim, para esse último, a educação é entendida como um processo que deve, necessariamente, levar o indivíduo a reconhecer não só a sua condição de indivíduo no mundo, mas, também, a sua condição de agente que cria o mundo. Chega-se a esse duplo reconhecimento através do movimento das contradições internas entre a razão e o mundo material e das condições materiais do mundo em que a razão existe.

Segundo essa concepção freireana, o ato de leitura não pode estar dissociado da leitura do mundo e não se trata apenas de ler e conhecer as coisas do mundo, mas, efetivamente, o de transformá-lo – o que inscreve a educação como prática da liberdade. Freire compreendeu, no entanto, os limites da educação para operar o processo de mudança em condições objetivas desfavoráveis, razão pela qual direcionou a sua atenção para dois importantes focos: o conflito e a esperança (Freire, 1969, 1970, 1992).

“Não é possível compreender a vida social fora da existência dos antagonismos, fora da existência dos conflitos”. Se ganha consciência nos conflitos, pois, com eles, o homem se transforma, se educa e se reeduca (Blois, 2005).

É possível assumir um sentido amplo para o termo conflito e incorporar a ele a noção de problema, de situação problemática ou desafiadora. Dito isto, pode-se afirmar que, para Paulo Freire, “não há vida sem conflitos” e, no âmbito humano, são os conflitos e os problemas que, ao desafiarem o homem em sua relação com o mundo, desencadeiam nele o que nós conotamos como consciência ou estado de consciência. É importante ressaltar que essa consciência não se dá de forma automática sempre que o indivíduo estiver diante de um conflito. No entanto, pode-se facilitar o desencadeamento da mesma através da problematização. Isso explicaria a insistência de Freire para a importância dos educadores-educandos se predisporem, junto aos seus educandos-educadores, a uma problematização sistemática e permanente, pois, como dizia ele: “a problematização é a tal ponto dialética que seria impossível alguém estabelecê-la sem comprometer-se com o seu processo” (Freire, 2002b, p. 82).

É importante ressaltar que não foram as leituras de Marx que levaram Freire a se aproximar dos oprimidos e a se comprometer contra as injustiças, mas, efetivamente o contrário. Assim ele nos explica: “as pessoas nunca me disseram: Paulo, por favor, por que você não lê Marx? Não. As pessoas nunca me disseram isso, mas a realidade me dizia isso. [...] Daí eu comecei a ler Marx e a ler sobre Marx e quanto mais o fazia mais me convencia de que nós realmente teríamos que mudar as estruturas da realidade, que deveríamos comprometer-nos totalmente com um processo global de transformação” (Freire & Horton, 2003, p. 227; Blois, 2005).

A trinômia consciência-mundo-transformação não se completa somente com a consciência do mundo. Pois, da mesma forma “como o ciclo gnosiológico não termina na etapa da aquisição do conhecimento existente, pois que se prolonga até a fase da criação do novo conhecimento, a conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua autenticidade se dá quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade” (Freire, 1992, p.103). A conscientização sem transformação é um puro palavreado, pois as relações inerentes ao trinômio consciência-mundo-transformação não se completam, ou seja, se o que se diz que muda é a consciência torna-se explicito, desta forma, que o mundo, ele mesmo, é intocado (Freire, 1992).

A relação entre conflito e esperança pode ser intermediada pela consciência do sujeito. Ou seja, o conflito pode desencadear a consciência no homem e este, através da consciência, sabendo-se biológica e historicamente inacabado, busca, através de sua vocação ontológica, o ser mais – fonte e alicerce da esperança. É por isso que o contrário da esperança - a desesperança - negando o ser mais, imobiliza e faz sucumbir o sujeito. Ou seja, quem da desesperança padece cai, geralmente, no fatalismo onde não é possível mobilizar as forças indispensáveis ao embate de recriação do mundo (Freire, 1992).

Paulo Freire nos alerta, no entanto, que a esperança sozinha não transforma o mundo. Atuar movido por tal ingenuidade pode levar também ao pessimismo e ao fatalismo. Por outro lado, não se pode prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, haja vista que esta luta de libertação tem sempre um suporte ético (Freire, 1992).

Um outro alerta de Paulo Freire aponta que a esperança, enquanto necessidade ontológica, precisa ancorar-se na prática para tornar-se um inédito viável e, quiçá, uma realidade histórica. É por isso que “não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã. Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero” (Freire, 1992, p. 11).

Se aceitarmos que a consciência do inacabamento produz o ser de esperança, devemos aceitar, por necessidade lógica, que ao ser de esperança está negado qualquer determinismo. Expandiremos esse argumento para demonstrar a autonomia do pensamento de Paulo Freire frente ao marxismo, pelo menos para aquele de matiz mecanicista.
Como ponto de partida do nosso argumento, citaremos a contradição entre determinismo e o que Paulo Freire concebe como sendo características ontológicas do humano: esperança e ética. A contradição pode ser assim explicitada: se o homem é produto de determinação social (cultural ou de classe), ele é irresponsável pelo que faz em seu mover-se no mundo. Aceitar essa irresponsabilidade humana, determinada heteronomicamente, implica em não mais poder falar em esperança, ética, nem tampouco em liberdade e autonomia.

Assim, apoiado pela sua própria práxis educativa, Freire nunca aceitou qualquer forma de determinismo (genético ou cultural), nem a conseqüência lógica do mesmo – a irresponsabilidade humana. A posição do autor pode ser assim ilustrada: “nos momentos mais desafiadores da trajetória humana, irrompe sempre o inédito viável como uma luz no fim do túnel, provocando e convocando os humanos a não se sucumbirem à tentação de quaisquer determinismos”. E continua, “esse negócio de determinar, de decretar o desaparecimento do sistema capitalista porque a fase posterior é o socialismo, é imobilismo de esquerda, é fatalismo libertador, é um fatalismo ao revés” (Blois, 2005). Freire reitera isso em vários de seus textos e de várias maneiras mostrando sempre que “a história é tempo de possibilidade e não de determinismo e que o futuro é problemático, mas não inexorável” (Freire, 1992; Blois, 2005).

Um outro ponto de divergência de Paulo Freire com o mecanicismo de certas ortodoxias marxistas é a sua crença em Deus. O autor advoga que “num processo de mudança radical de qualquer sociedade, há de se dar o direito às pessoas de acreditarem ou não em Deus. Ou em nada. Ou no que quer que seja” (Blois, 2005, p.50). Isso não dá o direito, no entanto, “às religiões que tentam atrapalhar a reivindicação dos direitos legítimos das massas populares em nome de Deus, pedindo paciência àqueles que não comem e prometendo para estes o Reino dos Céus” (Blois, 2005, p.50).

4.1.2 – Humberto Maturana frente à dialética

Diferentemente de Freire, Humberto Maturana não faz referência à dialética em seus textos nem utilizou a mesma como ferramenta para construir o arcabouço teórico da Biologia do Conhecer. Isso não impede que possamos, no entanto, identificar oposições dialéticas no corpo de conhecimentos produzidos pelo autor.

Assim, para exemplificar o que foi dito e tornar mais claro o nosso argumento, reinterpretaremos, à luz da dialética, um dos problemas abordados pela Biologia do Conhecer - a autonomia do vivo e seu acoplamento estrutural com o mundo. Para melhor compreensão dos nossos leitores, particularmente daqueles que não estão muito afeitos com a obra de Maturana, resumiremos a questão da autonomia do vivo e de seu acoplamento estrutural com o mundo, conforme estas questões nos são apresentadas pela Biologia do Conhecer (Maturana 1997a, 1997b; Maturana & Varela, 1995).

Acreditamos que um dos momentos cruciais da ruptura de Maturana com o pensamento biológico tradicional se deu quando o autor aceitou a pergunta formulada por um de seus estudantes, qual seja: o que é um ser vivo?

Cônscio que toda pergunta que pede uma explicação exige como resposta um mecanismo gerativo, Maturana, ao invés de propor as tradicionais características dos seres vivos, propôs, depois de muita reflexão, um mecanismo gerativo para a fenomenologia do vivo e do viver. Segundo esse caminho explicativo, o vivo é uma unidade submetida a uma lógica circular de produção dos seus componentes de produção. Dito de outra maneira, o vivo é uma rede molecular de produção de moléculas constitutivas que regenera a si mesma continuamente e, ao mesmo tempo, especifica, através de uma fronteira física, o domínio onde essa rede se realiza – sua topologia no espaço (Maturana & Varela, 1995). A especificidade desse auto-engendramento é garantida por um processo interno de produção não seqüencial e não hierárquico de tal forma que o que se produz é o próprio produtor, numa relação inseparável entre ser e fazer. A esse processo de auto-criação o autor denominou de autopoiesis (auto=próprio; poieis=criação). Ao descrever esse mecanismo gerativo comum a todos os seres vivos, o autor apontou para a existência de uma organização mínima que qualquer estrutura viva deve respeitar. Ou seja, uma condição sine qua non para a realização do vivo é a manutenção de sua organização autopoiética, embora esta mesma organização possa ser realizada por diferentes estruturas, por diferentes estratégias moleculares e por diferentes biomoléculas (Maturana, 1997a, 1997b, 2001; Maturana & Varela, 1995; Andrade & Silva, 2003).

Há um ponto fundamental, apontado pela Biologia do Conhecer, que deve ser aqui ressaltado, qual seja, para que a vida se realize, duas condições interdependentes devem ser satisfeitas: (a) ocorrência de uma dinâmica autopoiética em uma unidade e (b) o acoplamento estrutural desta unidade ao mundo. Assim, os organismos que perdem a dinâmica autopoiética ou o acoplamento estrutural com o seu mundo, se desintegram e morrem. Este processo de acoplamento estrutural do vivo com o mundo, que já perdura, pelo menos, 3,8 oito bilhões de anos (Andrade & Silva, 2003) foi denominado por Maturana de “Co-deriva Natural” (Maturana & MPodozis, 1992).
Acreditamos que a co-deriva natural entre o vivo e o mundo possa ser reinterpretada à luz da dialética como um par de opostos que se dialetizam. Destarte, o vivo é mundo (tese) e o vivo é não-mundo (antítese). Ou seja, o vivo é mundo, na medida em que os elementos que o constituem são partes integrantes do mundo e, além disso, sua organização sistêmica não pode se contrapor, radical e bruscamente, às mudanças do mundo, sob pena de destruição. Por outro lado, o vivo é não-mundo, na medida em que ele é um sistema autônomo e, portanto, não pode se homogeneizar, brusca e radicalmente, com o mundo, sob pena de perda de sua organização autopoiética e, por conseguinte, sua destruição.

O acoplamento estrutural do vivo com o mundo, traduzido pela capacidade do vivo em se manter próximo e congruente com o meio (o mesmo) e, ao mesmo tempo, afastado e não homogêneo com o meio (o outro) é, a nosso ver, mantido pelo movimento dialético. Unidades autopoiéticas que negam o mesmo do seu mundo, tornando-se incongruentes a ele, podem, no limite, serem destruídas. Do mesmo modo, os sistemas vivos que, perdendo a dinâmica autopoiética, se homogeneízam totalmente com o meio, também são destruídos. Somente as unidades que são capazes de manter a co-deriva natural com o seu meio (Maturana & MPodozis, 1992; Maturana & Varela, 1995) ou, do nosso ponto de vista, sustentar a dialética do mesmo e do outro (Andrade et al. 2002, Andrade & Silva, 2003), permanecem autopoiéticas e, portanto, vivas.

Se em Hegel a cultura surge como superação da tensão dialética homem-mundo, com o presente superando o passado, pelo o que na cultura se fez, e o futuro superando o presente, pelo que na cultura se faz, advogamos, como um primeiro recorte, que a cognição é a síntese da superação da tensão dialética entre o fluxo do viver individual - qualquer que seja ele - e o mundo. Se o recorte feito pelo observador apontar o conjunto das trajetórias de vidas das espécies na seta do tempo, e não o fluxo do viver individual, a evolução assume esse lugar de síntese.

Dialética, Diálogo e Conversa - Parte I

Luiz Antonio Botelho Andrade & Edson Pereira da Silva
Publicado: Revista Educação Brasileira (CRUB), No 55, V.27, p. 51-77, 2005.
Texto completo, disponível em (http://www.crub.org.br/admin/publicacoes/revista_55.pdf)

Parte II - Parte III - Parte IV

Resumo
Neste ensaio as contribuições de Paulo Freire e Humberto Maturana são abordadas e comparadas ressaltando as consonâncias e as dissonâncias entre ambos e as conseqüências decorrentes disso para educação. Para tanto, foram utilizadas as categorias dialética, diálogo e conversa com as quais são analisadas as questões do conhecimento, da autonomia do sujeito, a relação com o outro e o compromisso social. A conclusão principal deste ensaio é que o eixo unificador da vida e obra de Freire e Maturana é uma emoção fundamental ao ser humano que permite a aceitação do outro, enquanto legítimo outro, na convivência. Assim, concordando com Maturana e Freire, ultrapassam-se as três categorias fundadas na linguagem e tenta-se uma síntese que possa unir razão e emoção de modo a avançar para além da interpretação racional e para além da ação emocional, buscando a construção de uma nova práxis epistemológica.
Palavras-chave: dialética, diálogo, conversa, emoção e amor.

1- Introdução
Quando a obra de um autor ganha dimensão universal e se mantém perene, é freqüente a produção de genealogias e cartografias que buscam demarcar o contexto histórico, na tentativa de revelar o momento criador e, mais importante, compreender a heurística, base de formulação de novas perguntas e novas criações.

Este ensaio não chega a ser um trabalho de demarcação genealógica ou cartográfica. Ele pretende, simplesmente, abordar as contribuições de dois ícones do pensamento latino americano - Paulo Freire e Humberto Maturana - ressaltando as consonâncias e as dissonâncias entre ambos no campo epistemológico e as conseqüências decorrentes desse campo na práxis educativa.

Antes da análise comparativa de algumas das contribuições destes dois autores para o pensamento universal é importante focalizá-los biográfica e contextualmente.

2- Paulo Freire

Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) nasceu de uma família de classe média, na cidade de Recife, capital do Estado de Pernambuco. Ele afirma que seus pais lhe deram um belo testemunho de respeito e querer-bem e que isto o marcou para sempre. Paulo conta que viveu com grande dificuldade na infância, particularmente no período da grande crise de 1929, quando morava em Jaboatão. Ainda que tenha sofrido algumas dificuldades iniciais para estudar, formou-se em Direito, mas optou por não exercer essa profissão. Envolto em outra paixão – a educação – dedicou-se primeiramente aos problemas de gramática e linguagem, tornando-se professor de língua portuguesa aos 19 anos. Mais tarde, já trabalhando no Serviço Social da Indústria (SESI), sentiu-se desafiado por várias questões político-educacionais, especialmente, o analfabetismo. Da preocupação à ação, Paulo Freire envolveu-se inteiramente com a alfabetização de adultos. A partir de suas reflexões e de sua experiência adquirida, produziu um caminho pedagógico em que o alfabetizando fosse capaz de apropriar-se criticamente do próprio processo de alfabetização, como um ato de sua criação (Gadotti, 1996; Freire, 2002a; Blois, 2005).

Mais tarde, início da década de 60, já tendo desenvolvido o Método que o tornaria internacionalmente conhecido e estando engajado em ações educativas que demonstravam que a leitura da palavra não poderia estar desvinculada da leitura do mundo, foi considerado, na época, como subversivo pelo regime militar iniciado com o golpe de 64. Foi preso e, mais tarde, obrigado a exilar-se. Depois, já na condição de exilado, Freire nunca perdeu seu compromisso com os excluídos, estando eles na Bolívia, Chile, México, Estados Unidos ou em qualquer lugar do mundo. Por suas andanças e práxis libertária transformou-se, assim, em um andarilho da esperança (Freire, 2002a; Blois, 2005).

Depois do seu retorno ao Brasil, após 16 anos de exílio, manteve sua coerência política e seu grande compromisso com a causa da educação. Atuou de forma intensa em vários lugares e de muitas formas, seja como militante, professor, administrador e escritor. Pouco antes de sua morte, ocorrida no dia 2 de maio de 1997, Paulo Freire teria dito: “Eu nunca poderia imaginar a educação sem amor. Sou um educador, acima de tudo, porque amo” (Mayo, 2004).

3- Humberto Maturana

Humberto Maturana Romesín nasceu em Santiago do Chile, em 1928, de uma família de classe média. Tendo em vista a separação de seus pais, ainda na infância, Maturana foi criado quase que exclusivamente por sua mãe, de quem guarda lembranças de uma relação amorosa e de grande respeito para com a autonomia dos filhos, fatos estes que o marcaram profundamente por toda vida. Da convivência amorosa com a mãe, aprendeu, desde cedo, que as coisas boas que lhe acontecem são presentes da existência. Da sua autonomia estruturada na relação materna, aprendeu, desde cedo, o senso de responsabilidade para consigo, para com os outros e para com a vida. Uma passagem marcante na vida de Maturana e que expressa parte do que foi dito antes é relatada pelo próprio autor: “aos oito anos de idade, minha mãe se aproximou de mim e de meu irmão e fez o seguinte comentário: ‘filhos, não existe nada que seja por si só, bom ou ruim. Caberá a vocês interpretar a situação do momento e tomar a decisão. Agora, voltem a brincar’”.

Maturana estudou medicina no Chile até o 4o ano e graduou-se em biologia, na Inglaterra. Doutorou-se na Universidade de Harvard e participou de um dos mais famosos grupos de neurobiologia da década de 50. Sua curiosidade científica foi despertada, desde muito cedo, para duas questões fundamentais - a percepção e as relações constitutivas dos seres vivos. A partir das reflexões suscitadas por estas duas questões, Maturana elaborou todo um arcabouço teórico denominado Biologia do Conhecer. Através deste arcabouço teórico o autor rompeu radicalmente com o sentido habitual da noção de cognição - entendida como captação e processamento de informações do mundo exterior pelo organismo – e, no bojo desta ruptura, nos ofereceu um novo paradigma para compreensão deste fenômeno. Para este novo paradigma a cognição é a ocorrência de um duplo ato de criação (poiesis) que configura tanto o vivo quanto o mundo. Se o mundo em que vivemos é criado com o nosso próprio viver, surge a indissociabilidade entre viver, fazer e conhecer. Neste sentido, não se pode mais evitar a analogia do fenômeno do conhecer com o trabalho do artista, pois só se conhece assim: em ato de criação – ato radical, porque nada preexiste a ele - nem o vivo, nem o mundo.

A aceitação deste modelo explicativo traz enormes conseqüências para o nosso ser e para o nosso fazer cotidiano. Assim, no campo educacional, rompe-se com a idéia de instrução e/ou de transferência de informações de um emissor (professor) para um receptor (aluno), radicalizando o que se entende por construtivismo. Enquanto uma reflexão sobre o conhecer, surge uma epistemologia que leva em conta a biologia do observador. Enquanto uma reflexão sobre as relações humanas, surge uma explicação original para o fenômeno da linguagem. Como a linguagem só pode surgir com a aceitação da legitimidade do outro, fundado na relação, ressalta-se a essencialidade do amor e da ética para o surgimento do fenômeno social. Para além destas temáticas, o novo instrumental teórico tem permitido o estudo de outras questões até então pouco abordadas como a consciência e a relação mente/corpo (Maturana, 1989, 1997a, 1997b, 2001; Maturana & Poerksen, 2004).

Maturana vive em Santiago do Chile onde criou, junto com Ximena D’ávila, o Instituto Matriztico (http://www.matriztica.org). Neste novo espaço reflexivo Maturana e colaboradores vêm trabalhando para o entendimento do que eles denominam de matriz biológica da existência humana.

Conhecer e Conhecimento